A administração pública brasileira precisa urgentemente de um choque de profissionalização. Há muito amadorismo em todos os níveis da gestão pública e em áreas sensíveis e estratégicas para o país.
Isso decorre fundamentalmente do absurdo número de cargos comissionados na administração pública brasileira, o que provoca elevada rotatividade nos escalões decisórios, descontinuidade administrativa, perda de memória institucional e perda de capacidade de resposta da máquina administrativa às demandas que a sociedade justamente lhe apresenta.
Temos, apenas na esfera federal, mais de 20 mil cargos comissionados, enquanto países como a Alemanha, também de estrutura federal, têm menos de mil.
Evidentemente que, em órgãos de forte orientação política, uma pequena margem de cargos comissionados se faz necessária para que o titular do órgão (ministro de Estado, secretário de Estado, prefeito, parlamentar etc.) possa contar com um pequeno grupo de sua confiança técnica para implementar as opções políticas que ele representa. Assim, em um ministério, é razoável que o secretário-executivo, o chefe de Gabinete e alguns assessores próximos sejam cargos de livre nomeação e demissão.
Diga-me os fatos e eu te direi o direito. Esse aforismo latino, comum no meio jurídico, é corolário do espírito de imparcialidade que deve presidir a interpretação das leis. A distorção do ideal de justiça começa quando, além de escrutinar os fatos, o intérprete resolve modular o direito em conformidade com os sujeitos envolvidos.
Há alguns dias, a Comissão de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil divulgou parecer no qual propugna pela inconstitucionalidade da gratificação de eficiência dos auditores fiscais da Receita Federal, sob o argumento de que tal verba afronta algumas das diretrizes do ordenamento jurídico nacional: a impossibilidade da destinação de receita tributária para fins privados, o princípio da não afetação de impostos a gastos específicos, a vedação de vinculação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público e a primazia do princípio da impessoalidade da Administração.
Até aí, nada surpreendente se, em ato quase simultâneo, o mesmo comitê não tivesse saído em defesa da gratificação atécnica e genericamente denominada “honorários de sucumbência”, atribuída a advogados da União — categoria, por disposição estatutária, obrigatoriamente vinculada à entidade.
Tais "honorários de sucumbência", malgrado a denominação, que remete a um instituto típico de Direito Privado, constituem um fundo que alberga bem mais do que a simples verba devida pela parte perdedora aos patronos da parte vencedora em litígios judiciais: inclui também os encargos legais acrescidos aos créditos das autarquias, das fundações públicas e da União - decorrentes na quase totalidade de tributos - tão logo sejam inscritos em Dívida Ativa, ainda que esses créditos não venham a ser objeto de execução fiscal.
Pela disciplina do Decreto-Lei 1.645/1978, os encargos legais - cujo montante é de 20% sobre a totalidade do crédito inscrito - substituem a condenação do devedor em honorários sucumbenciais, na cobrança executiva da Dívida Ativa da União, ou seja, já na fase litigiosa do processo. Não na fase administrativa. Assim, é incontroverso que os encargos cobrados (e pagos) antes do ajuizamento da dívida possuem natureza mais assemelhada à penalidade moratória do que propriamente de ônus de sucumbência.
Ademais, mesmo para aqueles créditos sob execução judicial, a verba sucumbencial possui traços distintivos claramente delineados: de percentual variável (não podendo ultrapassar 20%), a fixação do seu quantum compete exclusivamente ao Judiciário, ao cabo do processo litigioso, de acordo com os critérios elencados no art. 85 do Novo Código de Processo Civil. Encargos legais, a seu turno, possuem alíquota estipulada a priori e à revelia de ato judicial, não se subordinando à disciplina do codex.
Para testar a natureza sucumbencial e privada da verba, bem como sua compatibilidade com a lei processual civil, uma única pergunta é suficiente: pode o particular que litiga contra a União estabelecer previamente o percentual que seu patrono perceberá a título de sucumbência, em caso de êxito? A resposta negativa nos dá um indício de que, a exemplo das multas moratórias, os encargos legais possuem natureza orçamentária de receita pública. Aliás, isso está explicitamente reconhecido no Decreto-Lei 1.025/1969.
Tudo isto pesado e sopesado, como então condenar o bônus de eficiência da Receita Federal com uma mão e, com a outra, abençoar a destinação de encargos legais para fins de remuneração? Se há, no primeiro caso, destinação de receita tributária para fins privados, afetação de impostos a gastos pré-determinados e vinculação da remuneração de servidores públicos, todas condutas vedadas pela Constituição, o mesmo não se aplica ao segundo? A crítica de um, aliada à defesa de outro, é o que a doutrina jurídica costuma chamar de venire contra factum proprium - situação na qual o agente, diante de fatos semelhantes, comporta-se de maneira não coerente.
Também não se pode compreender o fato de a citada comissão da OAB divisar o risco de auditores se conduzirem parcialmente no julgamento de um lançamento tributário, atentando assim contra a moralidade administrativa, e, apesar disso, não considerar a hipótese, igualmente verossímil, de procuradores públicos deliberadamente descurarem da cobrança administrativa que precede a execução, com o intuito de garantir o ajuizamento do crédito e assim um volume dobrado de encargos legais. Ou apenas um dos lados estaria propenso a ofender os primados da moralidade e da imparcialidade?
Os fermiers généraux, contratadores de impostos à época do absolutismo francês, que detinham os direitos de cobrar as exações em nome do Estado e se apropriavam de parte substancial da arrecadação, possuíam uma competência ampla: eram a um só tempo coletores e executores da dívida fiscal. Acumulavam em si funções que hoje se encontram segregadas. Para fazer valer a execução das dívidas, podiam buscar e expropriar os ativos dos devedores da Coroa. Associá-los exclusivamente à autuação e cobrança do crédito tributário, desprezando a sua competência executiva, é contar a história pela metade.
No dispositivo do Estatuto da OAB em que são listadas as finalidades da instituição, defender a Constituição e a ordem jurídica vem antes de promover, com exclusividade, a representação e a defesa dos advogados. Tal ordem não é aleatória nem desprovida de causalidade. Ela implica que a agenda corporativa da entidade não pode sobrepujar o seu compromisso com as diretrizes constitucionais e o estado de Direito.
Ao colocar em duas balanças diferentes a gratificação de eficiência da Receita Federal e os honorários sobre encargos legais da Advocacia Geral da União, ambos provenientes de recursos de natureza indiscutivelmente pública, a Comissão de Direito Tributário da OAB inverte o estatuto da entidade, deixando transparecer em sua conduta a mesma parcialidade que agora procura combater.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário